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Contra-revolução sexual

Campanha evangélica pela castidade pré-conjugal e discurso de artistas como os Jonas Brothers revalorizam a virgindade entre a juventude cristã.

Por Joanna Brandão

Nos palcos de todo o mundo, eles galvanizam a atenção das adolescentes. Joe, de 19 anos; Kevin, 21; e Nick, de 16 – os Jonas Brothers –, são alguns dos artistas mais badalados do momento. O trio americano tem músicas açucaradas, como convém às bandas do gênero. Quem não se lembra, por exemplo, dos portorriquenhos do Menudo, uma coqueluche entre as teens dos anos 1980, ou dos rapazes do extinto grupo Polegar, cujos pôsteres ilustravam os quartos das adolescentes de sua época? Mas os Jonas Brothers chamam a atenção por algo diferente. Assumidamente cristãos, os jovens artistas caminham na contramão dos colegas do showbiz e fazem da defesa da virgindade pré-conjugal uma de suas bandeiras. Eles juram de pés juntos que se manterão castos até o casamento, no que têm sido seguidos por milhões de fãs.

Ninguém sabe se o compromisso será seguido à risca, mas fato é que os Jonas Brothers, todos ex-alunos do Eastern Christian High School, em North Haledon, New Jersey (EUA), conseguiram fazer de algo considerado fora de moda um tema obrigatório nas conversas de inúmeros jovens como eles – a valorização da virgindade. O grupo faz do uso do chamado anel de pureza – acessório que os adeptos do movimento fazem questão de ostentar – e de declarações favoráveis à castidade suas marcas registradas em shows, entrevistas e aparições públicas. “As alianças servem como lembrete constante para viver uma vida com valores”, diz Nick, o mais novo dos Jonas Brothers.

O movimento religioso em prol da abstinência sexual até o casamento teve início em 1994, na cidade americana de Baltimore. Inconformadas com a pressão que sofriam na escola por serem virgens, duas adolescentes evangélicas queixaram-se ao pastor de sua igreja, de denominação Batista. Por iniciativa delas, foi organizada uma reunião com outros jovens para discutir a questão da sexualidade sob a ótica bíblica. Dali, surgiu uma campanha, que recebeu o nome de True love waits, algo como “O amor verdadeiro espera”. Logo, o projeto estendeu-se para as escolas e demais instituições ligadas à juventude, sendo adotado posteriormente por diversas orientações religiosas. Jimmy Hester, atual coordenador do programa, informa que já existem cerca de 3 milhões de jovens envolvidos diretamente com a causa. “Esse é o número que temos documentado. Durante as palestras, alguns adolescentes assinam nosso acordo de adesão”, explica.

Inicialmente, a organização do programa lançou uma pulseira de plástico para simbolizar a preservação da castidade. Mais tarde, ela foi substituída por um pingente de prata, mas só com o anel da pureza houve uma maior popularização do movimento pró-pureza sexual entre os jovens, inclusive aqui no Brasil. O estudante Renan Scott, de 16 anos, membro da Assembleia de Deus em São Paulo, acha que a postura de gente famosa como os integrantes do Jonas Brothers repercute positivamente. “Eles estão corretos e simplesmente mostram o que acreditam. Identifico-me com a atitude deles em mostrar sua fé para todos, indo completamente contra o ritmo do jogo e do que a mídia impõe”. O “jogo”, no caso, é a liberalidade sexual.  O adolescente conta que, para a maioria de seus amigos, o sexo funciona como fonte de prazer, de popularidade e de admiração entre os colegas. “Todos querem ser o grandepegador, o bonzão”, critica.

Conflito – Embora não use o anel por considerá-lo modismo, Andréia Maressa, 17, evangélica batista, defende que homem e mulher devem se guardar para o casamento. Ela cita o texto de I Tessalonicenses 4: “Porque esta é a vontade de Deus, a vossa santificação; que vos abstenhais da prostituição”. A jovem lembra que o compromisso maior é com Deus. “Quando me questionam como posso ter certeza de que este momento será especial sem experimentar antes, respondo que foi o Senhor quem me criou e também criou o sexo”, afirma. “Mas a pureza sexual vai muito além de não fazer sexo, está no ato de pensar, de falar e de agir.”

Doutora em educação e especialista em sexualidade humana, Ana Cláudia Bortolozzi Maia conceitua a virgindade como um aspecto do comportamento humano, construído a partir de valores e modelos presentes na sociedade. “Assim como outras questões relacionadas à sexualidade, trata-se de um fenômeno cultural”, diz. Para ela, a importância dada à virgindade é construída por meio de uma valoração social determinada culturalmente e historicamente. “Assim, a virgindade, atrelada a preceitos religiosos ou não, é um valor pessoal e familiar dentro de diferentes contextos”, afirma.

“Os Jonas Brothers são garotos diferentes e a atitude deles valoriza a fidelidade”, empolgam-se Karina Napole, 11, e Larissa Zaratin, 12, alunas da sétima série de um colégio católico em São Paulo. “É muito difícil encontrar alguém que defenda essa postura”, emenda a primeira. Paola Ratola, 18, estudante ligada à Igreja Batista, aborda a questão com mais maturidade: “A preservação da virgindade demonstra o caráter e os princípios adquiridos pela pessoa, justamente por esta ser uma área de difícil controle”. Ela acha correto o jovem não iniciar sua vida sexual antes do casamento. “É que ali se firma um compromisso sério. É uma união para sempre – além do mais, é uma situação constrangedora estar cada vez com uma pessoa e no final acabar rejeitada e falada”, frisa.

No entender da especialista Ana Cláudia, a pressão social e da mídia é realmente determinante nessa questão. “O que mais percebo é uma falta de autonomia na escolha em ser ou não virgem, isto é, pessoas que querem ou não ter vida sexual não como uma escolha autônoma, mas para corresponder aos ideais e cobranças de pais, amigos, parceiros etc”. Para a educadora, o tema da virgindade, para o jovem, apresenta-se complexo. “Querer ser virgem e sofrer pressão social para não o ser; ou querer ter vida sexual e não fazê-lo por sofrer pressão familiar ou religiosa é conflituoso do mesmo jeito”, exemplifica.

Mariana, jovem frequentadora de uma igreja presbiteriana em São Paulo, é um exemplo desse conflito. Tanto, que pediu À reportagem para ter seu nome trocado. “Antes de convertida, sentia-me pressionada a perder a virgindade. Entre os 16 e 17 anos, a maioria de minhas colegas estavam começando sua vida sexual e eu não queria ser diferente”, lembra. Ela conta ter tido sua primeira experiência sexual naquela época, com um namorado que tinha 21 anos. “Passou o tempo e o namoro acabou. Fiquei machucada, mas depois de um tempo comecei a namorar novamente”, conta. Mariana também relata que a prática sexual já se tornara frequente e comum em sua vida. “Contava minhas aventuras às amigas e me gabava disso, mas no fundo já começava a sentir um vazio, uma desvalorização.”

Hoje, com 24 anos e convertida ao Evangelho há dois, Mariana tem uma visão diferente de sua sexualidade. “Se eu pudesse voltar no tempo, ainda seria virgem”, afirma. O problema enfrentado agora é a vergonha de assumir isso para as amigas da igreja. “Prefiro não falar sobre o assunto, tenho medo do que vão pensar”, admite a jovem. “O que importa é que minha vida é outra – nasci de novo e enterrei meu passado. Deus sabe que agora busco viver em santidade e guardar o corpo que ele me deu para o dia em que me casar, apenas para meu marido”, completa.

 

 

Uma mente debaixo da graça

"O estudo da teologia adquire significado quando lança base sólida para a construção da experiência."

Por Darren C.Marks

Jon é estudante do primeiro ano de um curso de teologia e pertence a uma vibrante igreja. Ele faz trabalhos no campus onde estuda, e em breve será líder de uma congregação. Como muitos outros estudantes da disciplina, ingressou no seminário com bastante desejo no coração, mas pouco conhecimento do assunto. No ambiente acadêmico, a tarefa de questionar o mundo é levada a sério. Manter sua fé acanhada não é, por isso, uma opção para Jon. Ele se encontra em um mundo secular, onde sua crença sofre constante ataque. Como muitos novos estudantes de teologia, o rapaz sente-se ameaçado quando ouve que há diferentes tipos de cristãos. No começo, algumas das ideias apresentadas em sala de aula o aborreceram claramente. No entanto, aos poucos, ele aprendeu a lidar com tais questões. Agora, sente-se motivado a não apenas concluir os estudos, obter um diploma e partir para o ministério, mas também a tornar-se um cristão melhor – não apenas em seu coração, mas no entendimento de seu chamado e do exercício dele em sua geração.

Aos colegas e professores, Jon comenta que as coisas agora começam a fazer mais sentido. Ele está crescendo na fé, e o estudo das doutrinas – uma mente debaixo da graça – o está ajudando nesse crescimento. Só que doutrina é uma palavra que provoca, na mente moderna, uma série de imagens negativas: desde a memória da Inquisição, que em nome dela mandou gente arder na fogueira, ao enfado de ver teólogos debatendo sobre o número de anjos por metro quadrado no céu. De fato, doutrinas parecem bastante assustadoras. Cristãos vibrantes parecem querer cada vez menos relação com isso, preferindo focar suas atenções nas disciplinas espirituais, trabalhos de misericórdia e vida cristã autêntica. Para muita gente, doutrina pertence ao passado, e era geralmente usada para dividir a Igreja. Afinal, quantos protestantes, inclusive os reformadores, perderam tempo e energia discutindo se era permitido ou não mastigar o pão da ceia?

Será que é possível viver uma vida como discípulo de Cristo sem se deparar com questões doutrinárias? Se doutrina é uma forma de articular a maneira pela qual Deus manifesta sua presença na Igreja e, através dela, no mundo, ela pode trazer muito benefício, como no caso de Jon. Vista sob esse ângulo, a doutrina não é um peso, mas algo que ajuda o cristão em sua caminhada. Sua função não é a de dar aos crentes destaque na sociedade, mas ajudá-los a serem fiéis em seu contexto. A crise nas igrejas no Ocidente não são crises decorrentes da falta de informação, mas decorrentes do tipo de informação que tem sido passada. O filósofo James K.A.Smith apresenta isso de forma perfeita: “A teologia não é uma opção intelectual que faz de nós crentes inteligentes; é o conhecimento da graça que faz de nós discípulos fiéis.”

Para estabelecer bem a diferença entre uma coisa e outra, vale dizer que doutrina é a teologia arrumada. E isso, a gente encontra em quaisquer credos e confissões de fé. Teologia, ou como se diz, “fazer teologia”, é o processo de se estudar e elaborar ideias que acabarão como doutrinas. Uma declaração doutrinária – como as declarações do credo Niceno, por exemplo – é sempre uma declaração teológica. Nem todas as declarações teológicas, no entanto, acabam se tornando premissas doutrinárias. Mesmo assim, os termos doutrina e teologia referem-se à abordagem intelectual da fé, que, como Smith afirma, transforma o cristão em discípulo fiel de Jesus. Doutrina existe para fazer com que vejamos nossa vida de forma mais profunda, considerando as implicações de viver em favor do próximo, fazendo o que é certo e beneficiando a todos. Em síntese, doutrina é a sabedoria que nos ajuda a entender qual é nossa missão. Mesmo assim, nós parecemos bastante desinteressados em doutrina nos dias atuais – dentro e fora da igreja.

 

Experiência X conhecimento – Friedrich Schleiermacher, pensador iluminista alemão do século 19, construiu seu pensamento teológico sobre a questão da experiência espiritual. Tal ideia encontra eco na Igreja de hoje, cujos integrantes parecem muito mais interessados numa religiosidade baseada nas sensações do que em conteúdos. Em muitos casos, nós encontramos essa influência na forma pragmática com nossas igrejas, seminários e faculdades teológicas são conduzidos, mesmo sem perceber isso. Não por acaso, livros de sucesso entre o público evangélico são aqueles de categorias editoriais como transformação pessoal, autoajuda e espiritualidade prática. Uma teologia fundada sobre experiência geralmente falha em questões como moralismo, humanismo, ou, como é o caso do cristianismo norte-americano, uma religião na qual Deus e a nação são facilmente confundidos.

Considerado o pai da teologia liberal, Schleiermacher pensou que a essência do cristianismo estivesse no impulso da experiência, e não na doutrina, o que parece ter causado bastante problema. Isso prejudicou grandemente a relação entre católicos e protestantes, e ameaçou até mesmo o avanço científico. Para ele, se as ideias pudessem ser filtradas até um denominador comum, então as diferenças seriam dissipadas, e a humanidade poderia caminhar adiante em harmonia. Tal essência era religiosa – uma conexão com Deus capaz de ser experimentada por todo e qualquer homem. Exatamente o que hoje conhecemos como espiritualidade. Schleiermacher começou com experiências pessoais com Deus, e transformou tais experiências em teologia. De acordo com ele, começando a partir de nós mesmos, de nossos desejos, é mais fácil desenvolvermos uma visão mais pura de Deus e sermos relevantes como Igreja. Entretanto, de que forma esse projeto funciona?

Ao longo dos últimos 200 anos de história da Igreja, as ramificações teológicas têm sido grandes. Até mesmo aquela que foi chamada de a única doutrina bíblia verificável empiricamente, a do pecado original, encetou as mais diversas abordagens. Para Schleiermacher, pecado não é apenas uma questão de burlar as leis de Deus; pecado é energia desperdiçada. No seu entender, se prestássemos mais atenção nas coisas e tivéssemos mais informações, desejaríamos ser mais espirituais. Logo, um pecador é alguém que está desinformado acerca de quem ele é. Um religioso, em contrapartida, está ciente de sua posição, uma vez que conhece as verdades espirituais.

Sob tal perspectiva, Jesus aparece como alguém que veio para nos mostrar nosso potencial e para despertar a sensibilidade religiosa que existe em nós. Algo como um avatar espiritual, que pode ser chamado de Filho de Deus, mas difere do homem apenas em uma questão de nível, e não de natureza. Ele certamente não é o único homem-deus. A Igreja, então, torna-se o lugar no qual nos encontramos para ouvir que estamos todos bem, seguindo o modelo de piedade de Jesus. Embora possa haver questões positivas em tudo isso, permanece a questão de ser Deus ou não, nessa perspectiva, o agente de mudança na vida das pessoas. No final das contas, as verdades essenciais cristãs, mesmo aquelas sobre Jesus, precisam ser tidas como autênticas; do contrário, elas são descartadas.

É possível ver, portanto, que a teologia de Schleiermacher precisa ser corrigida em alguns aspectos. Ele nos leva, com seu esquema teológico, a questionarmos conceitos teológicos, ao invés de nos deixarmos ser interrogados por eles. A experiência espiritual acaba por nos colocar, e não a Deus, no banco do motorista. Permanecendo filhos teológicos do filósofo alemão, de forma consciente ou não, corremos o risco de transformar o cristianismo em algo, ainda que aparentemente interessante, desprovido de vigor espiritual. O oposto da experiência é o dogmatismo; um escolasticismo religioso frio, que acaba por sugar e esvaziar nossa relação com Deus.

 

Diálogo – É preciso prosseguir na discussão reconhecendo uma verdade: toda a teologia cristã nos ajuda a entender a Bíblia. É através dela que podemos entender o sentido espiritual de textos escritos há milhares de anos, partindo de culturas que são completamente diferentes da nossa. Além disso, as Escrituras Sagradas apresentam situações que são claramente direcionadas a contextos específicos, como a questão da imoralidade da cidade de Corinto que o apóstolo Paulo conheceu. Assim, a Palavra de Deus apresenta conceitos que ora parecem fáceis, ora obscuros. Há ainda passagens que proporcionam as mais diversas formas de interpretação.

Os cristãos primitivos sabiam disso tudo muito bem. Os três primeiros séculos da nossa Era foram palco de um diálogo bastante intenso com a Bíblia. Em suas abordagens teológicas, os primeiros crentes em Jesus eram desafiados a ler as Escrituras sem as influências judaicas, gregas ou as tendências paulinas ou petrinas que poderiam prejudicar sua interpretação. Ler a Bíblia através de lentes específicas pode levar a falsas conclusões, resultando em distorções práticas na vida cristã. Aqueles que encontraram pouca evidência bíblica sobre o que estava sendo dito acerca da doutrina da Trindade, por exemplo, acabaram chegando a conclusões sobre um Cristo que nunca foi humano, no caso dos docetas, ou que jamais foi divino, como defendia o arianismo.

Longe de sugerir a desimportância da Bíblia, a investigação teológica tem por objetivo entender as Escrituras como documento histórico, mas, muito além disso, afirmá-la como Palavra de Deus capaz de transformar o homem. A teologia nunca se viu como apenas reflexões humanas sobre algumas verdades conjecturadas. O melhor solo sobre o qual a teologia é edificada são as próprias Escrituras Sagradas como verdade revelada de Deus, e não as experiências espirituais. A autoridade da Palavra não pode ser colocada ao lado das experiências de cristãos. Como disse Martinho Lutero, as Escrituras são autoridade porque vêm de Cristo e apontam para ele. São as Escrituras que nos interrogam. Porque pode ser uma tarefa difícil escutar a Cristo através das Escrituras, a Igreja tem escolhido perscrutá-lo através das investigações teológicas. Alguns escolhem ler a Palavra debaixo da orientação do Espírito, como os abolicionistas nos séculos 18 e 19 fizeram no que concerne à escravidão. A teologia testa estas leituras, ao fazer perguntas ao texto e à Igreja, dando clareza ao movimento do Espírito.

Esse método teológico se apresenta como uma contraposição à proposta de Friedrich Schleiermacher. Nós não devemos começar com uma espiritualidade particular para, só então, construir nossas convicções. O melhor caminho é o oposto – partir de convicções desenvolvidas a partir de uma viva relação com a Palavra de Deus, na presença do Espírito Santo, para moldar nossa espiritualidade, permitindo que a verdade revelada nos ensina e nos corrija.

 

Conhecimento da graça – Temos um bom exemplo desse processo no trabalho de outro alemão, Dietrich Bonhoeffer, que estudou em um período no qual o pensamento de Schleiermacher estava em alta, nos anos que antecederam a eclosão da Segunda Guerra Mundial. A maior parte dos professores de Bonhoeffer estava afinada com a mentalidade zeitgeist de seu país, o crescente orgulho alemão que se revelava no crescimento do nazismo e da generalização do antissemitismo. Eles liam as Escrituras, mas tomando suas experiências pessoais como prioritárias; como consequência, sua teologia apenas reforçava a mentalidade de poder que permeava a Alemanha de Hitler.

Ao começar a ler as Escrituras, Bonhoeffer percebeu que Jesus deveria ser o centro de toda a sua compreensão. As verdades acerca da expiação e encarnação tomaram cor e vida em sua trajetória pessoal. Suas compreensões acerca de Cristo o ajudaram a ver que o antissemitismo e o nazismo estavam tomando o lugar de Jesus na Igreja alemã, tornando-se, na verdade, num movimento anticristo. Por isso, e a alto preço, tornou-se porta-voz da resistência cristã ao zeitgeist. Bonhoeffer sabia, como Calvino, Agostinho e tantos outros da tradição cristã, que ideias que podem parecer irrelevantes – como a Trindade, expiação, escatologia, encarnação – são extremamente importantes para a formação espiritual do ser humano. A teologia nos ajuda a mapear as Escrituras, à medida que elas nos interrogam, debaixo do poder e da presença do Espírito Santo. Ela é uma espécie de memória que nos faz ouvir o que Deus tem falado, lançando luz sobre nossa experiência.

A crescente falta de interesse em teologia deve-se, em boa parte, aos líderes que enfatizam os sentimentos em detrimento da verdade. Deve-se, também, aos membros de igreja que acham que suas experiências com Deus são mais importantes e dignas de crédito do que as verdades ensinadas na Bíblia. Mas pessoas como Jon, com sua mente ávida por conhecimentos que possam consolidar ainda mais a sua fé, mostram a validade de se interpretar tudo – inclusive, as próprias experiências – à luz da Palavra de Deus. Ele e muitos mais cristãos já aprenderam que não é possível crescer espiritualmente sem conhecer doutrina, e que a teologia é o conhecimento da graça que faz de nós discípulos fiéis.

 

 

Passado esquecido

Apesar dos mais de 150 anos de uma história intensa da Igreja Evangélica no Brasil, memória protestante ainda é negligenciada.

Por Laelie Machado

A rigor, a história do protestantismo no Brasil é quase tão antiga quanto a da chegada das primeiras naus portuguesas, ao raiar do século 16 – uma diferença de pouco mais de cinquenta anos entre o desembarque de Pedro Álvares Cabral e a dos protestantes franceses liderados por Nicolas Villegaignon, que fundaram a França Antártica, no litoral carioca, antes de serem expulsos. Conte-se também o período de permanência dos holandeses no Nordeste, na segunda metade dos anos 1600, quando Maurício de Nassau implantou um protetorado protestante em plena colônia portuguesa católica. Também houve a chegada dos colonos alemães luteranos, a partir de 1824. Mas, em geral, se considera a chegada do primeiro missionário evangélico – o médico escocês Robert Kalley –, em 1855, como o marco inicial da Igreja Evangélica nacional.

A partir dessa época, denominações históricas, como a congregacional, fundada por Kalley, a presbiteriana, a metodista e a batista, chegaram ao país com o objetivo de converter os brasileiros à fé cristã reformada. No entanto, parte considerável dessa trajetória, com seus avanços e percalços, ficou perdida no tempo. Isso porque a preservação da história das igrejas evangélicas no Brasil sempre foi problemática, e atualmente está limitada a algumas instituições (em geral, denominacionais) que se preocupam em resgatar tanto desse passado quanto possível. Tais iniciativas, levadas a cabo muitas vezes apesar da falta de apoio e do desinteresse das lideranças, são um facho de luz sobre as origens e a trajetória do movimento religioso que mais cresce no país.

Um desses lugares é o Centro de Memória Metodista, entidade mantida pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Ele surgiu a partir da decisão do Colégio Episcopal de preservar os arquivos e Museu Histórico do Metodismo Brasileiro. O professor Paulo Ayres Mattos, coordenador do centro, explica que o objetivo é tornar o local uma referência nacional na preservação da memória histórica da denominação, implantada no país na segunda metade do século 19, e do protestantismo brasileiro em geral. “Existe um desconhecimento geral da história da fé protestante no Brasil”, lamenta, “e do testemunho corajoso dos nossos antepassados, que enfrentaram todo tipo de perseguição. Há mesmo um desprezo pelo que Deus fez ao longo de mais de 180 anos de presença evangélica aqui”, aponta Mattos.

O professor reconhece a existência de alguns esforços isolados nesse sentido, mas acha que ainda não se faz isso de maneira organizada – o que é fato, ainda mais levando-se em consideração que poucas iniciativas utilizam os mais atuais recursos tecnológicos disponíveis no campo da arquivologia e museologia. Ele salienta que, para muitas pessoas, há um salto entre o tempo do Novo Testamento e o cristianismo brasileiro contemporâneo. “Mas, se hoje podemos testemunhar o Evangelho com liberdade, devemos isso, em grande parte, ao testemunho fiel de nossos irmãos e irmãs do passado”, lembra. O acervo do centro, que estará acessível ao público em setembro de 2010, é constituído de um grande número de documentos impressos, fotográficos, audiovisuais, eletrônicos e digitais. Nesse material é possível encontrar, por exemplo, xilogravuras de Marco Túlio Cícero do ano de 1518, além de itens raros, como o livro que reúne as obras completas de Platão, de 1538, a Bíblia traduzida por Martinho Lutero, de 1582, e asInstitutas da religião cristã, de João Calvino, um dos pais da teologia reformada, datadas de 1592. No mesmo local funcionará o Museu Histórico da Igreja Metodista, com várias peças antigas e raridades.

Outra instituição que se preocupa com a conservação dos registros do passado protestante brasileiro é a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB). Há seis anos, foi inaugurado o Museu da Bíblia (MuBi) em Barueri, na Grande São Paulo, onde fica também o parque gráfico da editora. A linha de trabalho do museu, pela própria natureza da instituição mantenedora, é um pouco diferente: a intenção ali é apresentar a história da Bíblia Sagrada, de maneira geral. Por tabela, o MuBi conta ao visitante a história das Sagradas Escrituras no Brasil e a influência da Palavra de Deus na cultura e na vida do povo brasileiro. Para isso, a entidade, além de seu acervo fixo, promove constantemente exposições temáticas e desenvolve iniciativas educacionais.

O diretor do museu, pastor Erní Walter Seibert, ressalta a importância da preservação da história religiosa. “Tem havido um crescimento na consciência da importância de preservar a história”, opina Seibert. Ele fala que esse fenômeno está se intensificando com a celebração de jubileus entre as principais denominações e igrejas brasileiras – caso da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), que acaba de comemorar seu sesquicentenário, e da Assembleia de Deus, que em 2010 começa a festejar cem anos de atividades no país. “Essas celebrações estão propiciando a publicação de obras nas quais a história dessas organizações é registrada”, diz. De fato, a Casa Publicadora das Assembléias de Deus (CPAD) tem feito diversos lançamentos registrando e valorizando a própria trajetória. Seibert destaca a importância da criação de museus e institutos históricos para a preservação de documentos antigos, colocados à disposição de todos para consulta e pesquisa. “Isso evita a amnésia histórica, tão prejudicial em qualquer área de atividade humana.”

“Eterno retorno” – Esse trabalho de conservação não é fácil. Para formar um acervo, organizações como o MuBi dependem de doações de peças históricas e ajuda financeira para manutenção e desenvolvimento, o que inclui contratação de profissionais e serviços especializados. Parcerias entre organizações com o mesmo propósito também são importantes. A biblioteca do Museu da Bíblia, por exemplo, recebe todas as novas traduções das Escrituras produzidas no mundo. “Isso é possível porque temos parceria tanto com outras sociedades bíblicas quanto com as instituições que traduzem a Palavra de Deus pelo mundo afora”, explica Seibert. Outra dificuldade é o acesso às informações. “Localizar a documentação sobre o metodismo e o protestantismo brasileiros, em suas manifestações religiosas, educacionais e sociais espalhadas pelo país afora – e conseguir a confiança de seus atuais depositários para colocá-la à disposição do público em geral de forma organizada, com acesso fácil e rápido –, é muito complicado”, continua Paulo Ayres. Nessa lista de dificuldades, o pesquisador inclui a falta de recursos que financiem tais iniciativas. “Para isso, é importante que o projeto seja desenvolvido como parte das atividades de uma universidade, o que nos possibilitará, esperamos, acesso a recursos públicos e privados de incentivo a ações culturais”, comenta.

A questão financeira nem sempre é a mais complicada. O dinheiro pode não resolver quando um documento ou material histórico está em mãos de particulares e essa pessoa cria laços de afetividade com o material. “Esses laços afetivos, no entanto, nem sempre se transmitem para a geração seguinte, que descuida desse material e, por vezes, até o descarta, pensando que não tem valor. Isso causa uma perda irrecuperável”, destaca Erní Seibert. Para evitar esse risco, segundo ele, a recomendação é a doação de tais documentos a uma instituição séria. “Ali, o material será preservado e colocado à disposição de toda uma coletividade.”

Foi graças à doação de peças, fotos e documentos que a Igreja Evangélica Fluminense conseguiu montar um museu que é referência para muitos estudantes e pesquisadores do segmento religioso. Localizado numa sala do histórico templo da Rua Camerino, no centro antigo do Rio de Janeiro, a entidade só existe graças à perseverança e à dedicação da bibliotecária aposentada Esther Marques Monteiro, de 84 anos. Ela, que não recebe nada pelo serviço, cuida da Biblioteca Fernandes Braga, com mais de mil volumes que contêm parte da história da Igreja no Brasil. Há também objetos usados pelo pioneiro Robert Kalley, documentos e vasto material fotográfico. “Faço isso porque é importante preservar material tão rico”, diz a anciã. “Infelizmente, as igrejas não dão muito valor às nossas tradições”, constata.   

No entender do bispo Mattos, os evangélicos precisam encarar com seriedade a preservação de sua documentação, estabelecendo centros encarregados de cuidar desse material. “Ao longo dos anos, o protestantismo acumulou uma importância histórica reconhecida pelos mais diversos setores da sociedade. Portanto, sem a preservação dessa cultura, estaremos sempre inclinados a cair na tentação do eterno retorno, não tendo referências que nos ajudem a afirmar nossa identidade evangélica”, diz o professor.“É preciso ajudar o povo evangélico a compreender que, sem memória, não sabemos de onde viemos.”

 

Conservando o presente para as gerações do futuro

Entrevista com a antropóloga Christina Vital.

 

Para que não se repita no futuro a dificuldade encontrada hoje em dia no resgate da memória protestante, é importante lembrar que o presente um dia também se transformará em história – por isso, é necessário registrá-lo de maneira sistemática e organizada. Fundado há quarenta anos pela iniciativa de acadêmicos e intelectuais, como Rubem Alves, o Instituto de Pesquisas da Religião (Iser) surgiu com o objetivo de investigar o papel da religião na sociedade brasileira. Com isso, tornou-se fonte de pesquisas e uma referência sobre a trajetória recente da Igreja. A antropóloga Christina Vital, pesquisadora associada da área de Religião e Sociedade do Iser, falou a CRISTIANISMO HOJE sobre o papel do instituto e a relevância de suas pesquisas:

 

CRISTIANISMO HOJE – Qual é o papel do Iser no registro da história da religião no Brasil?

CHRISTINA VITAL –O Iser é uma organização não-governamental de pesquisa e de intervenção em pautas que articulem religião, direitos humanos e meio ambiente. Há uma equipe de acadêmicos – pós-doutores, doutores, doutorandos e mestres – que compõe o corpo de pesquisadores associados do Iser. Temos uma série de estudos e pesquisas disponibilizados em nosso site, em nossa sede, no Rio de Janeiro, e em bibliotecas universitárias. Nestas últimas, disponibilizamos um periódico, a revista Religião e sociedade, onde são divulgados trabalhos de pesquisadores do Brasil e do exterior sobre o campo religioso nacional e internacional e sobre as diferentes formas de expressão religiosa. Parte da história da manifestação religiosa em nosso país encontra-se em nossas publicações e pesquisas. 

 

Como contornar as falhas das igrejas na preservação de sua própria memória?

Foi-se o tempo em que as instituições e os movimentos sociais precisavam de organizações externas a eles e da universidade para registrar as suas histórias. Hoje, tanto os movimentos quanto as instituições, dentre elas as religiosas, vêm trabalhando para se apresentar à sociedade. Naturalmente, as instituições mais organizadas e com mais recursos podem contar com ajudas profissionais para registrar, resgatar e expor suas histórias e memórias para os membros novos, antigos ou mesmo para a sociedade mais ampla.

 

Por que a maioria das iniciativas nessa área partem de igrejas consideradas tradicionais?

As igrejas protestantes históricas têm maior tradição de estudo e de diálogo com a academia, de modo que conseguem fazer melhor essa preservação do que as igrejas pentecostais, mesmo as mais antigas. O modelo episcopal partilhado em muitas dessas igrejas históricas é, ainda, importante fator a possibilitar o resgate de uma história e a divulgação – diferentemente das congregações, que têm, muitas vezes, histórias distintas de formação e identidade própria, ainda que ligadas a uma mesma denominação.

 

Presbiterianos mantêm tradição centenária

É graças ao que alguns chamam “burocracia” que denominações históricas, como a batista e a presbiteriana, conservam registros importantes de seu legado à sociedade. O pastor Ludgero Bonilha Moraes, curador dos dois museus e do arquivo da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), conta que todas as decisões da denominação são arquivadas. “Desde a chegada do primeiro missionário no Brasil, são guardados documentos, atas, relatórios e fotos”, diz o religioso, que também é secretário executivo da IPB. Seu trabalho é garimpar o que há de realmente relevante para a história dos presbiterianos no material enviado pelas igrejas e avaliar que vale a pena ser guardado.

O museu mais importante da denominação, que guarda o maior acervo, está em Campinas (SP), onde também está localizado um dos seminários presbiterianos do país. A outra unidade está em Recife. Já na Catedral Presbiteriana do Rio, templo preservado pelo Patrimônio Histórico, funciona um pequeno e bem cuidado museu que narra ao visitante a história da denominação. Já do lado de fora, há uma estátua interativa do respeitado pastor Mattathias Gomes dos Santos, que liderou a congregação na primeira metade do século 20. Segundo Ludgero, a importância desses espaços é um estímulo para que as igrejas presbiterianas de todo o Brasil conservem seu material histórico. “Muitas coisas nos são enviadas para exposição”, conta o dirigente.

 

Sementes de mostarda

Em meio a divisões étnicas e religiosas, cristãos sudaneses lutam para pacificar um país traumatizado pela guerra.

Por Isaac Phiri

Gangura, uma aldeia próxima da cidade de Yambio, a apenas seis quilômetros da fronteira do Sudão com o Congo, é um território dominado pelo Exército de Resistência do Senhor (LRA, na sigla em inglês). O grupo é uma pequena e brutal milícia de resistência que luta para derrubar o governo local. O sul do país é um território sem lei. Saques, depredações, seqüestros, estupros e massacres são rotina ali.  Valas comuns abrigam os restos mortais das vítimas, próximas às aldeias encravadas na vegetação espessa. A violência é generalizada, e grupos rebeldes e milícias tribais são, em grande parte, os culpados.  

O Sudão, maior nação da África em extensão territorial, está conflagrado há muito tempo. Vinte um anos de guerra civil deixaram dois milhões de mortos, quatro milhões de desalojados e um país dividido étnica, cultural e religiosamente. O norte, de maioria árabe e muçulmana, é bem diferente do sul, cuja população é negra e fracionada em diferentes povos, muitos deles cristãos. Um acordo de paz firmado em 2005 deu uma trégua no conflito, mas apenas oficialmente, já que as disputas locais não acabaram. “O acordo pôs fim a uma guerra devastadora. Esta é a boa notícia”, celebra Richard Williamson, enviado especial do governo americano ao Sudão, para em seguida observar: “A má notícia é que temos hoje uma paz imperfeita”.

Contudo, uma pequena semente de paz, do tamanho de um grão de mostarda – para usar a célebre citação bíblica – está germinando em solo sudanês. A Igreja tem promovido a pacificação a seu próprio modo, mantendo a sua missão com o povo da terra. Nos últimos meses, Christianity Today viajou centenas de milhas através do sul do Sudão, visitando Juba, Yambio e algumas aldeias distantes. Não foi difícil encontrar lideres cristãos apaixonados que abrem mão de sua segurança pessoal para construir o Reino de Deus e trabalhar por um Sudão mais unificado.

Um deles é o alto e magro James Lual Atak. Anos atrás, como um refugiado e soldado-mirim, Atak foi um dos 27 mil chamados Meninos Perdidos, separados de seus pais durante os anos de guerra para lutar por motivos que eles mesmos eram incapazes de compreender. Hoje, ele é um pastor, fundador do New Lives Ministries (Ministério Vidas Novas)na distante aldeia de Nyamlell, Estado de Bahr el-Ghazal. Atak levanta as mãos acima de sua cabeça para proteger seus olhos do sol ardente enquanto observa o carregamento de 1,6 tonelada de material médico. Os suprimentos foram trazidos de Nairóbi, capital do vizinho Quênia, e serão levados pelo restante do caminho em um outro avião para o vilarejo de Atak. Os suprimentos serão estocados nas prateleiras da clínica médica construída recentemente pela entidade cristã que dirige. O complexo já inclui uma escola, um templo e vários dormitórios.

Debaixo das árvores – Quando Atak fundou oVidas Novas, em maio de 2002, ele estava sozinho para cuidar e educar 153 crianças. Não havia construção alguma naquele tempo, só árvores. A cada dia, o pastor tinha que dividir as crianças em três grupos e colocar cada um embaixo de uma árvore diferente. Ele pegava um grupo e começava a ensiná-los a contar números; então, corria para a sombra de outra árvore, na tarde de sol quente, para ensinar as crianças a recitar o alfabeto até que elas aprendessem – e, em seguida, ia para a terceira árvore e ensinava canções com conteúdo bíblico à garotada.

Depois de aterrissar com os suprimentos médicos em Nyamlell, James Atak orgulhosamente apresenta seus dois novos dormitórios. Numa paisagem de tons marrons e beges, terra, árvores e barracas, brilham as paredes brancas do dormitório, onde o telhado ondulado surge como um farol. O vilarejo inteiro parece girar em torno do complexo do Vidas NovasAs crianças do orfanato, agora aproximadamente 400, correm ao encontro do religioso logo que o vêem.

O destino de Nyamlell poderia ter sido diferente se Atak tivesse aceitado o bilhete dourado para refugiados se estabelecerem nos Estados Unidos. Ele e aproximadamente outros 3.800 jovens sudaneses que haviam sobrevivido à guerra receberam a oferta de um bilhete só de ida num avião com destino à América. Depois de muita oração, ele rejeitou o convite; estava decidido a fazer alguma coisa por sua gente. Mais tarde, graduou-se numa faculdade bíblica no Quênia e voltou e para a sua aldeia. Por um grande milagre, descobriu que seus pais ainda estavam vivos.

Usando um terreno doado, Atak deu início ao seu ministério pregando debaixo de uma árvore. Aos poucos, foi ganhando a confiança de muitos órfãos, aos quais ofereceu um lar. Ele admite haver questionado sua decisão de permanecer na África por duas vezes. “Mas nós podemos ser felizes onde estamos, longe ou perto, contanto que tenhamos a Cristo”, diz, resoluto. Em pouco tempo, os habitantes locais preencheram todos os postos de trabalho do Vidas NovasAtak tornou o ministério indígena a prioridade máxima para mostrar aos jovens órfãos novas maneiras de dar moradia, alimentação e educação uns aos outros na aldeia.

“Kit tiroteio” – No sudeste de Nyamlell, no sul do país, está a cidade de Juba, sede do Movimento para Libertação dos Povos do Sudão, que ocupou a linha de frente no combate às forças do governo. É um retrato dos efeitos de uma guerra em nações miseráveis – faltam água, eletricidade, comida e serviços básicos de saúde. O aeroporto internacional virou terminal rodoviário e muitas famílias desabrigadas amontoam-se em casas devastadas, outrora luxuosas. Atualmente, Juba tem cerca de 250 mil moradores, mas este número cresce rapidamente.  Habitação é um problema crítico devido aos milhares de sulistas que retornam do exílio em Cartum, a capital do país.

Não há hotéis em condições de funcionamento, por isso os visitantes são acomodados em casamatas pré-fabricadas. Em cada alojamento, é possível encontrar um kit que inclui instruções sobre como proceder em caso de tiroteio. “Mantenha a calma. Fique abaixado. Se possível, corra para a sala de segurança”, diz o texto. Dentro da tal sala, sem janelas e normalmente utilizada como cozinha, há um telefone para chamadas de socorro para os pacifistas armados.

Em Juba, fica a única estação de radio cristã em todo o Sudão. A estação funciona em dois contêineres fortificados com concreto e cobertos por um telhado de zinco. Ali trabalha a mexicana Cecília Sierra Salcido. De compleição física frágil, ela é uma evangelista zelosa e pertence à ordem religiosa Missionários Combonianos do Coração de Jesus, assim chamada em homenagem a Daniel Comboni, padre italiano que atuou como missionário na região na segunda metade do século 19.  A ordem fundada por Comboni resume suas estratégias no slogan “Salve a África através da África”. A idéia é motivar as igrejas africanas a formar obreiros para trabalhar no próprio continente.

Vestida com um traje branco-neve a despeito da poeira de Juba, Cecília é diretora da Radio Bakhita, que iniciou suas transmissões na véspera do Natal de 2006 apresentando músicas natalinas e mensagens de líderes católicos e anglicanos. A estação de rádio recebeu o nome de Josephine Bakhita, uma sudanesa que foi escrava durante a maior parte de sua vida. Após décadas de sofrimento, Bakhita uniu-se às irmãs Canossian na Itália e ajudou a preparar missionários ocidentais para a África. A emissora é a primeira de uma sonhada rede de sete estações a serem espalhadas pelo sul do Sudão e pelas montanhas Nuba.

A Bakhita transmite 14 horas diárias, principalmente em inglês e árabe, mas também em dialetos locais, e tem uma audiência potencial de 500 mil ouvintes. Os programas incluem temas dirigidos a mulheres e jovens, ensino religioso para membros de igrejas e assuntos sobre reconciliação e crescimento. “Quanto ponho nossos programas no ar, sei que uma mensagem, uma palavra, podem atingir diretamente o público”, diz Cecília. “Eu sinto a responsabilidade e o poder que repousam sobre o processamento e a transmissão da programação diária, ao apertar o botão e deixar a mensagem ir”. Para ela, a Rádio Bakhita tem a missão de reforçar o processo de reconciliação, desenvolvimento e construção da paz.

Retomada – A paz, contudo, ainda é algo distante do cotidiano dos habitantes do sul. Ao longo das fronteiras, milícias violentas vivem às custas do extrativismo e de letais ataques repentinos, praticamente à vontade. Viajar pelas estradas, que não são pavimentadas, é uma tarefa penosa e perigosa. No entorno de Juba, tudo que se vê é uma terra virgem. A cidade mais próxima é Yambio, onde vive o povo azande. O chefe da tribo, um homem de cerca de 30 anos, pede para não ser identificado. Cristão, ele se queixa de que o povo do sul é tratado como “gente de segunda classe”: “O governo central quer que todos sejam muçulmanos”, denuncia.

Segundo ele, o acordo de paz de 2005 foi benéfico para todos, mas o processo ainda é precário. “Nossa paz ainda é frágil, assim como um pedaço de vidro ou um ovo”, diz. “O povo ainda não experimentou o fruto da paz”. Uma perspectiva para melhorar as condições de vida na região é a receita oriunda da exploração do petróleo da região de Abyei, que fica exatamente entre as duas partes do país. “Nós não estamos dividindo o dinheiro do petróleo – esta política é financeira”, protesta o líder. “Estamos orando muito”, resigna-se.

Há uma nova realidade para os cristãos sudaneses: a ainda precária paz mudou firmemente o Cristianismo para um período pós-missionário, pós-colonial. Por décadas, o sul do Sudão foi descrito como “cristão e animista”, uma referência à histórica atividade missionária cristã e o espiritualismo indígena. Hoje, as igrejas indígenas, com a maior parte dos pastores sudaneses negros, estão em toda parte. Seis grupos protestantes atuam no distrito de Yambio, e aproveitam o momento de calma para se concentrarem no fortalecimento espiritual das comunidades, na reconstrução dos templos e nos ministérios junto às famílias.

Os primeiros anos foram promissores. “Um governo foi formado e havia uma ordem”, diz Nicholas Kumba, pastor da Igreja Evangélica Luterana local. O povo sudanês do sul que havia fugido para países vizinhos – Congo, Uganda, República Centro-Africana, Quênia e Etiópia – começou a retornar. A frequência nas igrejas aumentou e as visitas pastorais às aldeias, que antes eram uma verdadeira aventura, tornaram-se menos arriscadas. Todavia, o progresso não chegou. Os serviços de saúde e de educação continuaram carentes e a pobreza permanecia. “Algumas coisas foram resgatadas, outras, não”, diz Kumba.

Unificação X divisão – Uma coisa que o governo do sul do Sudão luta para oferecer é segurança. É difícil pensar em qualquer lugar seguro nos dez estados que compõem a região. As ameaças surgem de muitos lados: soldados indisciplinados, rivalidades entre clãs e tribos e um banditismo bárbaro, resultante de anos de guerra. Em Yambio, a maior ameaça é o Exército de Libertação do Senhor, cuja brutalidade está acima de qualquer crueldade. O bispo anglicano de Torit, a capital do Estado de Equatoria, Bernard Balmoi, lembra de um incidente grotesco em sua diocese, onde o LRA matou várias pessoas e obrigou seus parentes a cozinhar e comer os corpos. Estes incríveis relatos têm efeito aterrorizante sobre centenas de aldeias sudanesas ao longo de todos os mais de 800 quilômetros fronteira do sul.

Ano passado, a Igreja Episcopal do Sudão, a maior e mais influente denominação protestante do país, hospedou uma conferência em Juba que se concentrou especificamente na questão dos pastores. No encontro, os relatórios de campo através do país eram alarmantes. A tensão entre muçulmanos e cristãos permanece muito elevada. Por exemplo, uma parte consideravelmente grande do cemitério cristão em Cartum havia sido tomada pelos muçulmanos para vender carros. Outras preocupações incluem rivalidades tribais, confrontos sangrentos entre criadores de gado e fazendeiros e um doloroso conflito por terras. A exploração de petróleo também é um grande problema. Aldeões perderam propriedades, abrigo e terras. Um analista da Visão Mundial resume os desafios do Sudão em três palavras: poder, riqueza e segurança. O país tem que resolver como o poder e a riqueza devem ser distribuídos. Ambos estão diretamente ligados à segurança.

Entretanto, o relógio marca a chegada do referendo de 2011 para decidir se o sul do Sudão deve separar-se do norte. Mesmo entre os líderes de igrejas, esta questão é controversa. Para o arcebispo de Juba, Daniel Deng Bul, a independência do sul é a conclusão de um processo iniciado em 1956, quando o país tornou-se independente do Reino Unido. Mas o bispo anglicano de Cartum, Ezekiel Kondo, é totalmente contra a divisão. Sua preocupação é de que, se o sul de maioria cristã se separar, a Igreja do norte, espremida numa sociedade muçulmana, vai desaparecer ao longo do tempo. “Eu sinto que a unidade do Sudão deveria ser uma causa defendida pela Igreja. Jesus mesmo veio para unir, não para dividir”, sentencia.  

Em sua declaração final, intitulada Vamos mudar da guerra para a paz, os dirigentes cristãos reunidos em Juba afirmaram que a Igreja não tem fronteiras. “Nós nos comprometemos a unir a Igreja do Sudão, quer seja em um ou em dois países”, destaca o documento. Entre outros 53 ponto, a conferência elencou ações específicas que os cristãos sudaneses deveriam adotar como modelo de reconciliação, como questões acerca de tribalismo, desarmamento, exploração de petróleo, refugiados, uso sustentável da terra, aconselhamento para traumas pós-guerra, harmonia étnica e união das igrejas.

O caminho a percorrer é árduo, mas iniciativas como a da Rádio Bakihta e do Ministério Vidas Novas apontam para a possibilidade de a fé cristã exercer papel fundamental no processo de pacificação do país. O pastor James Lual Atak sintetiza a idéia: “Eu sou apenas um homem a quem Deus usa para abençoar a muitos outros” – exatamente como a semente de mostarda que desabrocha em algo exuberante e belo.

 

Tirando as pedras do caminho

Drama do crack cresce sem controle, mas missões evangélicas mostram que saída é possível.

Por Talita RC

Sexta-feira, dez horas da noite. Em ruas semidesertas da maior cidade brasileira, homens, mulheres e crianças disputam as sarjetas e calçadas com ratos e sacos de lixo. O movimento é intenso e a variedade de tipos humanos, também; vestidos com farrapos ou roupas da moda, dezenas de pessoas negociam freneticamente cigarros, cachimbos, estiletes, comida com validade já vencida e, principalmente, pedrinhas de crack. A cena se passa na região da Luz e Santa Ifigênia, em São Paulo, mas se repete todas as noites – e à luz do dia, também – tanto nas grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro, Brasília e Salvador, como em pequeninas localidades. Sim, o crack é hoje problema de saúde pública de dimensão nacional, uma chaga que assusta a sociedade, preocupa o governo e destrói mentes e corações.

Droga de preço acessível mesmo a miseráveis – pode-se conseguir uma dose por um ou dois reais –, o crack é feito de sobras do refino da cocaína misturadas com outras substâncias químicas como bicarbonato de sódio e amônia. Chegou ao Brasil no final da década de 1980 e nos últimos cinco anos tem feito um verdadeiro arrastão pelo país. O Ministério da Saúde já o considera problema de saúde pública. De acordo com dados do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), quase 200 mil brasileiros estão viciados. A maioria deles começou a consumir “a pedra”, como é chamado o crack, entre os 13 e 26 anos. Enquanto se lê esta reportagem, boa parte deles estará consumindo o entorpecente ou tentando arranjar algum dinheiro para comprá-lo, seja vendendo alguma coisa de casa, endividando-se com traficantes ou simplesmente roubando.

Se o quadro já parece alarmante, as imagens e histórias de quem é dependente só reforçam a dramaticidade da situação. Tatiele não aparenta ter 29 anos. É miúda e magrinha, tem o cabelo curtinho, mãos trêmulas e fala acelerada. Há quatro meses, saiu de Campinas, no interior de São Paulo, deixou os dois filhos com a mãe e está morando na Cracolândia paulistana. “Não queria estar nessa vida, mas a pedra prende a gente de tal forma que, depois de uma semana usando, você já está completamente dependente”, desabafa a moça. Aos 12 anos, ela começou a fumar maconha, e logo partiu para a cocaína. “Isso não é vida”, faz coro Érica, que desde os 16 mora nas ruas do centro de São Paulo. Hoje, tem 28 anos, seis passagens pela polícia por furto, hematomas pelo corpo todo e uma cortante solidão. “Minha mãe e irmã morreram”, conta. “Não tenho amigos, nem sequer uma pessoa em que possa confiar”, diz, deixando as lágrimas escorrerem pelo rosto.

Farrapos humanos como Érica perderam completamente a esperança em determinado momento da vida. Mas enquanto aguarda para tomar banho nas dependências de uma instituição mantida por evangélicos, ela tem ao menos algum alento. “Deus nos faz nova criatura”, brada o pastor Humberto Machado para um público de mais ou menos 50 pessoas, entre dependentes químicos, homossexuais, sem-tetos e também obreiros, em sua maioria ex-viciados. Três cachorros alertas até parecem também entender a mensagem. O culto é o primeiro dos três que acontecem diariamente na igreja, que oferece também alimentação, banho e roupas, e foi montada em um salão da Rua Barão de Piracicaba, um dos braços da Cracolândia. “Começamos esse projeto na Primeira Igreja Batista, mas Deus colocou em nosso coração que era preciso estar mais perto para transformar essa realidade” conta Ricardo, o obreiro responsável pelo espaço. Ele deixou as drogas em 2008, e a fé teve papel fundamental em sua recuperação. “Eu quero que as pessoas tenham acesso a essa liberdade e paz que eu sinto hoje”, diz.

 

Envolvimento –A Cristolândia, como é chamado o projeto, em um mês de funcionamento enviou 30 pessoas para casas de reabilitação. O número parece pequeno perto do tamanho do problema, mas, só para ter uma idéia, a Prefeitura de São Paulo, após mais de oito meses de atuação intensiva na região – com a Ação Integrada Centro Legal –, conseguiu encaminhar apenas 190 pessoas para internação. “Não adianta colocar agente de saúde, polícia ou assistente social, gente que só está aqui para cumprir protocolo. É preciso envolvimento”, afirma a missionária Nildes Nery, que há cinco anos saiu de Salvador (BA) com marido e duas filhas para morar e resgatar vidas na Cracolândia, através do Projeto Retorno. Distribuindo lanches duas noites por semana e oferecendo, além de auxílios básicos, carinho, a pastora do Ministério Quadrangular conquistou o afeto e confiança dos moradores de rua, prostitutas e viciados da região. “Não há nenhuma novidade no que faço”, minimiza. “Só sigo aquilo que Jesus mandou. O mais importante dessa obra sempre será o amor”, frisa.
Pioneira na região, a Comunidade Evangélica Nova Aurora (Missão Cena) compartilha o amor de Deus com os excluídos desde 1987. Tudo começou em uma borracharia da Rua Aurora, conhecida zona de prostituição do centro ca capital paulista, onde o pastor Nivaldo Nassif fazia cultos às sexta-feiras. “Era a chamada Noite de Paz’” conta o missionário João Antonio, o Jota. Com a chegada de voluntários americanos, suíços e alemães, o projeto foi crescendo e ganhando novas áreas de atuação, junto a crianças e adolescentes em situação de risco e prostitutas. E, em 1991, a missão foi fundada oficialmente, contando com uma sede na Avenida General Osório, a conhecida Casa Amarela, e um terreno em Juquitiba, onde funciona o centro de reabilitação Fazenda Nova Aurora.

Na Casa Amarela, prostitutas, travestis, meninos de rua e viciados recebem atendimento médico e odontológico, assistência jurídica, comida, banho e roupa. E também ouvem a palavra transformadora do Evangelho. Os dependentes químicos têm a oportunidade de serem encaminhados para atendimento especializado e, se assim desejarem, receber a Cristo como Senhor e Salvador. À noite, os missionários saem pelas ruas para conversar com os usuários de crack e lembrar-lhes que é possível mudar. “É preciso cuidar daqueles que já caíram no vício, mas também de quem corre o risco de entrar nessa. Por isso, na Casa, temos atividades com jovens e crianças que moram nos prédios da região”, diz Jota.

 

Adrenalina fatal – Essas iniciativas mostram que, se há muitas pedras no caminho, há  também cada vez mais mãos dispostas a remove-las e a cuidar das feridas de quem foi machucado pela vida. “Primeiro, precisamos oferecer esperança, para depois construir o conceito de fé”, defende o pastor Junior Souza, da Vineyard, igreja focada em missões urbanas. E é preciso admitir que o processo de libertação nem sempre é rápido ou sem recaídas. “E isso muitas vezes acontece porque a igreja e as famílias não estão preparadas para receber essas pessoas, mesmo quando já não consomem drogas”, diz Ricardo. Uma estatística impressiona: segundo levantamentos das entidades cristãs que atuam com este segmento, cerca de 70% das vítimas do crack já frequentaram ou ao menos tiveram algum envolvimento com igrejas evangélicas.

Benedito, homem na casa dos 30 anos, de estatura média e extremamente amável, sentiu isso na pele. “Fui internado três vezes. Numa delas, fui batizado e arrumei um emprego. Mas, quando saí da casa de reabilitação, não tinha ninguém realmente ao meu lado, toda a minha história estava vinculada à droga”, relata. “Acabei usando o meu primeiro salário, de R$ 700, para ficar durante meses na Cracolândia”. Na quarta internação, parou para pensar no que havia ganho durante os sete anos em que viveu de maneira praticamente exclusiva para o vício. “Percebi que só perdi emprego, família e dignidade”, conta, com a voz embargada. “Com a ajuda dos irmãos e com força de vontade, decidi que não iria mais cair nessa armadilha do diabo. Hoje posso passar no meio das pessoas consumindo crack sem me entregar à vontade de usar. Deus trabalhou no meu espírito, o que supera qualquer desejo físico.”

Não é fácil ignorar as seqüelas da droga no corpo, mesmo quando ela não está mais presente na vida do ex-viciado. “Dizem que o efeito do crack é como o de oito orgasmos em, no máximo, doze segundos” conta Ricardo, que atua na Missão Cena. Isso pode é biologicamente explicado porque o conjunto de substâncias contidas na pedra atua com a dopamina, neurotransmissor químico responsável pelas respostas do corpo ao prazer. Com isso, ao usar a droga, o viciado fica mais agitado e, consequentemente, libera mais adrenalina, o que, em alguns, casos pode se fatal, levando a um infarto. Como o prazer e agitação são extremamente efêmeros e passageiros, em poucos segundos o usuário está desanimado, depressivo e com náusea, o que desperta a “fissura”, ou seja, a busca incessante pela próxima dose.

Apesar das consequências nocivas ao corpo, a questão principal não é essa. “A maioria das pessoas que usam drogas, sejam lícitas ou ilícitas, não tem problemas de saúde e nem precisam ser tratadas por conta disso”, diz o médico Raul Gorayeb, ex-coordenador do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) do Centro de São Paulo. Gorayeb foi afastado do cargo em fevereiro deste ano por discordar dos métodos do órgão oficial. “Para cuidar dessas pessoas, nós não temos que internar, mas sim ganhar a confiança delas, levar para um abrigo e verificar a existência de vínculos familiares”, explica.

É nessa lacuna que os obreiros evangélicos atuam: “Ganhamos muito respeito por parte dos órgãos públicos que trabalham na região, porque nos relacionamos com os usuários e não apenas os ‘atendemos’ ou ‘abordamos’, como se diz”, aponta a pastora Neldecy. Em todas as missões, a base da atuação é o diálogo e a aproximação com os dependentes, que, depois de pouco tempo, reconhecem nos missionários pessoas em que podem confiar. “A igreja, muitas vezes, tem que fazer o papel da família, cuidar das ovelhas”, defende Ricardo, da Cristolândia. E em uma coisa todos concordam: é preciso de fato ver essas pessoas, e não simplesmente encará-las como parte de um cenário triste.  

Para saber mais sobre o trabalho evangélico na Cracolândia, você pode entrar no site da Missão Cena (www.missaocena.com.br), acompanhar o twitter do projeto Retorno (@projetoretorno) ou ligar para lá (11/3371-1264) e visitar a Cristolândia (Alameda Barão de Piracicaba, 509, Luz; aberta todos os dias das 9h às 21h). Há campanhas muito interessantes contra o crack encabeçadas pela Secretária da Saúde (www.nuncaexperimenteocrack.com.br) e pelo Grupo RBS (www.cracknempensar.com.br) também. 

 

Uma luz na escuridão

Como uma história de abuso na infância ajudou a moldar o ministério do presidente da Compassion Internacional.

Por Wesley Stafford

Em um momento decisivo da minha vida, há uns três anos, me dei conta que precisava deixar Deus redimir a história da minha infância. Essa história foi tão dolorosa e confusa que eu passei nada menos que 35 anos sem falar sobre ela. Dizem que as crianças têm um anjo da guarda, mas eu cheguei mesmo a pensar que o que fora designado para me proteger era o mais preguiçoso de todo o céu... Afinal, onde foram parar minhas orações, meus clamores por misericórdia e socorro, que tanto fazia deitado em meu travesseiro durante aquele período tenebroso?

Recebi meu chamado e descobri o propósito e a missão de minha vida justamente no momento mais sombrio e doloroso de minha existência, quando tinha dez anos de idade. Lembro-me nitidamente de uma vela de aniversário rosa, daquelas em que é possível atear fogo em suas duas extremidades. Ela foi acesa pelo homem que, à época, tinha autoridade sobre minha vida. Ele era o responsável por uma escola para filhos de missionários no oeste da África. Aquela instituição era minha casa por nove meses de cada ano, desde que eu tinha seis anos. Minha vida inteira pode ser dividida em duas partes: antes e depois da vela.

Naquele dia, o responsável pela escola me fez caminhar até o refeitório, colocou-me sentado diante de meus coleguinhas e pôs a vela em minhas mãos, acendendo-a nas duas pontas. “Crianças”, ele nos disse, “vocês não podem servir a Deus e a Satanás, como Wesley tentou. Não se pode acender uma vela em suas duas extremidades sem se queimar”. Cinquenta crianças estavam petrificadas, em silêncio. Sentado naquela cadeira, com meus joelhos tremendo, eu olhava aterrado. Por detrás das duas chamas, via a face de meus amigos – garotos que, como eu, vinham de vilarejos e centros missionários de todos os lugares do oeste africano enquanto seus pais faziam a obra de Deus.

A política da missão dizia que todas as crianças deveriam deixar seus pais ainda pequenas. Como eu, elas experimentaram crueldades indescritíveis naquele lugar. Os dirigentes e educadores do estabelecimento eram missionários que, penso hoje, provavelmente fracassaram por não superar os desafios transculturais e lingüísticos do campo. Por isso, foram incumbidas da tarefa tediosa de cuidar dos filhos dos outros obreiros. Sem nenhuma supervisão, eles descarregavam em nós suas frustrações. Desde cedo, por isso, aprendi que coisas terríveis podem acontecer quando crianças são tidas como sem importância, ou como a última das prioridades. E tenho tentado convencer as pessoas justamente do contrário.

 

Pesadelo – Foram quatro anos de pesadelo. Por todos os meus dias na escola, convivi com violência. Tudo era razão para nos fazer apanhar, desde um fio puxado no cobertor a um olho aberto na hora de dormir. Quando comecei a estudar matemática, fiz as contas na média e descobri que apanhava cerca de dezessete vezes por semana. Os alunos éramos abusados não apenas física e emocionalmente, mas também espiritualmente. Crescíamos com pavor do Deus poderoso e vingativo que nos era apresentado. As mesmas pessoas que liam a Bíblia para nós durante o dia permaneciam nos dormitórios durante a noite, aproveitando-se dos indefesos. Meninos mais velhos, também vítimas, eram ensinados a como tocar sexualmente nos seus superiores, num ambiente depravado que satisfazia os desejos e a luxúria de homens que usavam todos os recursos físicos e psicológicos para nos calar.

Nem posso descrever a intensidade de dor, raiva e falta de esperança que afligiam minha alma. Nas mãos daquele homem que me torturou com a vela, eu sempre perdia. Era simples; ele era maior e mais forte, e eu, apenas um menino. Não havia quem nos protegesse. Não tínhamos braços paternos para os quais correr. Na escola, nós não podíamos sequer ter fotos de nossos pais, quanto mais reclamar de saudades de casa. Com o passar dos anos ali, percebi que já não conseguia lembrar como era o rosto de minha mãe. Tinha medo de partir seu coração se chegasse em casa e não a reconhecesse.

Os professores nos diziam que, caso contássemos o que acontecia ali, destruiríamos o ministério de nossos pais e arruinaríamos o trabalho evangelístico no continente africano. Não tínhamos ideia de que o nosso silêncio forçado perpetuava o mal contra nós. Nossas cartas à família eram controladas, de modo que não podíamos dar uma única pista sobre os horrores daquele lugar. O menor sinal de rebeldia era punido com agressões, e aprendemos a ser tão silenciosos quanto um cordeiro. Mesmo durante os três meses em casa com nossos pais, todos os anos, não abríamos a boca.

Eu sabia de sua paixão no anúncio do Evangelho, e eu amava meus amigos africanos. Se meu silêncio fosse garantir sua salvação, eu estava disposto a enfrentar qualquer coisa. Na verdade, era um africano de coração. Depois de nove meses de inferno na escola, meu coração era sempre renovado no verão pela alegria do convício com o povo local na vila em que vivia. As mulheres me tinham como filho. Bastava um simples arranhão numa brincadeira para que várias mães negras me pegassem no colo e enxugassem minhas lágrimas com seus vestidos coloridos. Na minha inocência, costumava orar a Deus para que minha pele ficasse escura como a deles. Todas as manhãs, ao acordar, eu checava para ver se ele havia atendido ao meu pedido. Ficava desapontado, mas pensava: “Talvez amanhã”.

Por assim dizer, eu era o assistente do meu pai. Juntos, levávamos o Evangelho a vilas nunca antes visitadas por brancos. Cabia a mim espantar os pássaros das árvores, para que seu barulho não impedisse as pessoas de ouvir sua pregação. Costumava reparar no rosto dos africanos quando eles ouviam pela primeira vez a palavra Jesu e via as esperanças que eram construídas por causa da chegada do Evangelho a suas vidas. Logo, eu era um missionário também. Por isso as palavras daquele homem naquela noite lúgubre no refeitório feriram-me mais do qualquer uma das surras que eu havia levado naquela escola: “Wesley nos traiu. Odiabo o usou para destruir o ministério de seus pais. Africanos irão para o inferno por causa de Wesley”.

 

Código de silêncio – Tudo aconteceu porque nas férias anteriores eu contara tudo. Estávamos no aeroporto com outros meninos, despedindo-nos das famílias, prestes a embarcar no avião que nos levaria de volta à África. Nossos pais seguiriam depois, de navio. No portão, coloquei a mão de minha mãe em meu rosto. Fiquei contemplando sua face sorridente, que me parecia tão bela. “O que foi, Wesley?”, perguntou ela, supondo que eu chorava apenas por antecipar a saudade. “Mãe, não quero me esquecer de como você é”, respondi. Ela também começou a chorar. Vi naquele momento uma oportunidade de ser resgatado. “Mãe, por favor, não me mande de volta para lá. Eles me odeiam, me batem. Por favor, eu tenho tanto medo!”

Jamais esquecerei o desespero no olhar de minha mãe. Senti seus soluços enquanto me abraçava. “O que eu posso fazer?”, balbuciava. Em menos de um minuto, minha irmã e eu estávamos embarcando com as outras crianças. Eu fizera o impensável – quebrara o código de silêncio. Meus amigos me olharam como se carregassem no olhar a imagem de minha sentença de morte. Durante o mês de viagem de meus pais de navio, minha mãe, confusa e com o coração partido, ficou tão abalada emocional e psicologicamente que logo ao desembarcar na África foi enviada de volta aos Estados Unidos para tratamento. Notícias de sua situação e das causas do problema espalharam-se como fogo. Logo chegariam aos ouvidos dos dirigentes da escola.

Eu não aguentava mais a humilhação, que novamente aconteceria. Meu algoz esperava que em minutos eu gritaria, choraria e lançaria a vela longe. Mas as duas afirmações – “Ministério de seus pais arruinados” e “Africanos no inferno por causa de Wesley” – eram mais do que eu podia suportar. Ao perceber que a cera quente começava a pingar em minha mão, fui fortalecido de forma sobrenatural. Rapidamente, pensei: “Posso vencer isso”. Aquele monstro havia se colocado em uma posição que, mesmo me fazendo sofrer, me dava a possibilidade de vencer. Eu sabia em meu coração que ele estava errado. Estava mentindo, e minha jovem alma clamava por justiça. Eu não era uma ferramenta de Satanás; era apenas um garoto pequeno clamando por socorro. Logo, já havia bastado de mentiras, injustiça, dor e sofrimento. Aquilo precisava acabar – e minha decisão era a de fazer acabar naquela hora. Nada me faria gritar ou derrubar aquela vela.

Mas estava assustado, lágrimas furiosas escorriam dos meus olhos por causa da cera fervente que me queimava. Ele havia me dado as costas, aumentando ainda mais o tom de suas acusações. Mas eu não mais ouvia sua voz. Tudo o que eu ouvia era o latejar do sangue em meus ouvidos. Trinquei os dentes, contraí os músculos e segurei aquele objeto da forma mais firme que podia. As pontas dos meus dedos ficaram vermelhas e vi bolhas saltando. De repente, fui transportado para fora do meu corpo. Flutuei acima daquele menino assustado, como se aquilo estivesse acontecendo a outra pessoa. Cheguei a ver a ponta do meu dedo acendendo com o fogo. Mas eu não largaria a vela.

Foi quando um menino saltou em minha direção e apagou as chamas. Galvanizadas, as crianças correram em várias direções. A reunião macabra acabou num grande pandemônio. Sozinho naquela cadeira, eu havia recebido meu chamado. Saí da posição de vítima e passei à postura de vitorioso. A partir daquele dia, eu seria um protetor das crianças. Dali por diante passaria a falar por aqueles que, como nós naquela escola por tanto tempo, não tinham voz. Alguns anos depois, o estabelecimento foi fechado e os que abusavam de nós foram incriminados e impedidos pela missão de trabalhar com crianças. Não foram presos por conta da leniente legislação da época. Muitos dos que estudaram ali comigo saíram carregando cicatrizes que jamais seriam fechadas.

 

Lágrimas de alegria – O fim da minha história, que Satanás tentou amaldiçoar, foi transformado por Deus em bênção. Ela finalmente veio à tona com a publicação, em 2007, de meu livroToo small to ignore – Why the least of these matter most? [em tradução livre, “Pequeno demais para ser ignorado – Por que o menor deles é o que mais importa?”]. Encorajado por meus editores, fiz da obra um manifesto para despertar os cristãos quanto à necessidade do cuidado com as crianças. Ao mesmo tempo, deixei o Senhor tratar das feridas mais profundas de minha alma. Minha história é o que move meu coração a lutar contra a miséria, a injustiça e o abuso. Foi isso que me trouxe à Compassion Internacional. Aquela paixão que me moveu aos 10 anos ainda me consome. Meu trabalho é lutar pela causa das crianças, mostrando a elas o amor de Jesus por suas vidas. Pense na minha alegria quando, todos os dias, centenas de pequenos aceitam a Cristo como salvador de suas vidas; ou na satisfação que sinto ao vacinarmos pela primeira vez milhares de crianças de um recanto do mundo contra doenças fáceis de prevenir, mas até então fatais para elas.

Nestes últimos anos, não tenho passado dez segundos sem chorar. Nem todas as minhas lágrimas, entretanto, são de tristeza. Tenho chorado bastante de alegria, vendo a vitória na vida de crianças, assim como vi um dia na minha. Ao finalmente contar minha história, pude ver algo como o outro lado do trabalho de tapeçaria. Deparei-me apenas com os nós e tranças por muito tempo; hoje, ao contrário, vejo a bela obra de arte feita por Deus e sua graça. Ele certamente ouviu cada um de meus clamores, fazendo cessar meu pranto e, através do sofrimento, moldando-me para viver para sua glória.

 

Wess Stafford é presidente da Compassion Internacional, com sede no Colorado (EUA), que desenvolve um trabalho de adoção de crianças. Esse artigo foi adaptado de uma de suas palestras

 

 

Fogo estranho

Em tempos de aberrações teológicas, apologistas e líderes evangélicos demonstram perplexidade diante de desvios doutrinários.

Por Da Redação

O crente brasileiro sabe: vez por outra, a Igreja Evangélica brasileira é agitada por uma novidade. Pode ser a chegada de um novo movimento teológico, de uma doutrina inusitada ou mesmo de uma prática heterodoxa, daquelas que causam entusiasmo em uns e estranheza em outros. Quem frequentava igrejas nos anos 1980 há de se lembrar do suposto milagre dos dentes de ouro, por exemplo. Na época, milhares de crentes começaram a testemunhar que, durante as orações, obturações douradas apareciam sobrenaturalmente em suas bocas, numa espécie de odontologia divina. Muito se disse e se fez em nome dessa alegada ação sobrenatural de Deus, que atraiu muita gente aos cultos. Embora contestados por dentistas e nunca satisfatoriamente explicados – segundo especialistas, o amarelecimento natural de obturações ao longo do tempo poderia explicar o fenômeno, e houve quem dissesse que a bênção nada mais era que o efeito de sugestão –, os dentes de ouro marcaram época e ainda aparecem em bocas por aí, numa ou noutra congregação.

Outras manifestações nada convencionais sacudiram o segmento pentecostal de tempos em tempos. Uma delas era a denominada queda no Espírito, quando o fiel, durante a oração, sofria uma espécie de arrebatamento, caindo ao solo e permanecendo como que em transe. Disseminada a partir do trabalho de pregadores americanos como Benny Hinn e Kathryn Kuhlman, a queda no poder passou a ser largamente praticada como sinal de plenitude espiritual e chegou com força ao Brasil. A coqueluche também passou, mas ainda hoje diversos ministérios e pregadores fazem do chamado cair no poder elemento importante de sua liturgia. A moda logo foi substituída por outras, ainda mais bizarras, como a “unção do riso” e a “unção dos animais”. Disseminadas pela Comunhão Cristã do Aeroporto de Toronto, no Canadá, a partir de 1993, tais práticas beiravam a histeria coletiva – a certa altura do culto, diversas pessoas caíam ao chão, rindo descontroladamente ou emitindo sons de animais como leões e águias. Tudo era atribuído ao poder do Espírito Santo.

A chamada “bênção de Toronto” logo ganhou mundo, à semelhança das mais variadas novidades. Parece que, quando mais espetacular a manifestação, mais ela tende a se popularizar, atropelando até mesmo o bom senso. Mas o que para muita gente é ato profético ou manifestação do poder do Senhor também é visto por teólogos moderados como simples modismos ou – mais sério ainda – desvios doutrinários. Pior é quando a nova teologia é usada com fins fraudulentos, para arrancar uma oferta a mais ou exercer poder eclesiástico autoritário. “A Bíblia diz claramente que haverá a disseminação de heresias nos últimos dias, e não um grande reavivamento, como alguns estão anunciando”, alerta Araripe Gurgel, pesquisador da Agência de Informações Religiosas (Agir). Pastor da Igreja Cristã da Trindade, ele é especialista e seitas e aberrações cristãs e observa que cada vez mais a Palavra de Deus tem sido contaminada e pervertida pelo apelo místico. “Essa tipo de abordagem introduz no cristianismo heresias disfarçadas em meias-verdades, levando a uma religião de aparência, sensorial, sem a real percepção de Deus”, destaca.

“Não dá para ficar quieto diante de tanta bizarrice”, protesta o pastor e escritor Renato Vargens, da Igreja Cristã da Aliança, em Niterói (RJ). Apologista, ele tem feito de seu blog uma trincheira na luta contra aberrações teológicas como as que vê florescer, sobretudo, no neopentecostalismo. “Acredito, que, mais do que nunca, a Igreja de Cristo precisa preservar a sã doutrina, defendendo os valores inegociáveis da fé cristã. A apologética cristã é um ministério indispensável a saúde do Corpo de Cristo”. Na internet, ele disponibiliza farto material, como vídeos que mostram um pouco de tudo. Um dos mais comentados foi um em que um dos líderes do Ministério de Madureira das Assembleias de Deus, Samuel Ferreira, aparece numa espécie de arrebatamento sobre uma pilha de dinheiro, arrecadado durante um culto. “Acabo de ver no YouTube o vídeo de um falso profeta chamado reverendo João Batista, que comercializa pó sagrado, perfume da prosperidade e até um tal martelão do poder”. acrescenta Vargens.

Autor do recém-lançado livro Cristianismo ao gosto do freguês, em que denuncia a redução da fé evangélica a mero instrumento de manipulação, o pastor tem sido um crítico obstinado de líderes pentecostais que fazem em seus programas de TV verdadeiras barganhas em nome de Jesus. “O denominado apóstolo Valdomiro Santiago faz apologia de sua denominação, a Igreja Mundial do Poder de Deus, desqualificando todas as outras. E tem ensinado doutrinas absolutamente antibíblicas, onde o ‘tomá-lá-dá-cá’ é a regra”. Uma delas é o trízimo, em que desafia o fiel a ofertas à instituição 30% de seus rendimentos, e não os tradicionais dez por cento. A “doutrina das sementes”, defendida por pregadores americanos como Mike Murdoch e Morris Cerullo nos programas do pastor Silas Malafaia, também rendeu diversos posts. Segundo eles, o crente deve ofertar valores específicos – no caso, donativos na faixa dos mil reais – em troca de uma unção financeira capaz de levá-lo à prosperidade. “Trata-se de um evangelho espúrio, para tirar dinheiro dos irmãos”, reclama Vargens. “Deus não é bolsa de valores, nem se submete às nossas barganhas ou àqueles que pensam que podem manipular o sagrado estabelecendo regras de sucesso pessoal.

Crise teológica – Numa confissão religiosa tão multifacetada em suas expressões e diversa em termos de organização e liderança, é natural que o segmento evangélico sofra com a perda de identidade. O próprio conceito do que é ser crente no país – tema de capa da edição nº 15 de CRISTIANISMO HOJE – é extremamente difuso. E muitas denominações, envolvidas em práticas heterodoxas, vez por outra adotam ritos estranhos à tradição protestante. Joaquim de Andrade, pastor da Igreja Missionária Evangélica Maranata, do Rio, é um pesquisador de seitas e heresias que já enfrentou até conflitos com integrantes de outras crenças, como testemunhas de Jeová e umbandistas. Destes tempos, guarda o pensamento crítico com que enxerga também a situação atual da fé evangélica: “Vivemos uma verdadeira crise teológica, de identidade e integridade. Os crentes estão dando mais valor às manifestações espirituais do que à Palavra de Deus”.

Neste caldo, qualquer liderança mais carismática logo conquista seguidores, independentemente da fidelidade de sua mensagem à Bíblia. “Manifestações atraem pessoas. O próprio Nicodemos concluiu que os sinais que Cristo operou foram além do alcance do povo, mas não temos evidência de que ele tenha mesmo se convertido”, explica o pastor Russel Shedd, doutor em teologia e um dos mais acreditados líderes evangélicos em atuação no Brasil. Ele refere-se a um personagem bíblico que teve importante discussão com Jesus, que ao final admoestou-lhe da necessidade de o homem nascer de novo pela fé. “Líderes que procuram vencer acompetição entre igrejas precisam alegar que têm poder”, observa, lembrando que a oferta do sobrenatural precisa atender à imensa demanda dos dias de hoje. “Mas poder não salva nem transmite amor”, conclui.

“A busca pela expansão evangélica traz consigo essa necessidade de aculturação e, na cultura religiosa brasileira, nada mais puro do que a mistura”, acrescenta o pastor Fabrício Cunha, da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo. “O candomblé já fez isso, usando os símbolos do catolicismo; o espiritismo, usando a temática cristã; e agora, vêm os evangélicos neopentecostais, usando toda uma simbologia afro e um misticismo pagão”, explica. Como um dos coordenadores do Fórum Jovem de Missão Integral e membro da Fraternidade Teológica Latinoamericana, ele observa que mesmo os protestantes são fruto de uma miscigenação generalizada, o que, no campo da religião, tem em sua gênese um alto nível de sincretismo.

Acontece que, em determinadas comunidades cristãs, alguns destes elementos precisam ser compreendidos como estratégias de comunicação e atração de novos fiéis. Aí, vale tanto a distribuição de objetos com apelo mágico, como rosas ungidas ou frascos de óleo, como a oferta de manifestações tidas como milagrosas, como o já citado dente de ouro ou as estrelinhas de fogo – se o leitor ainda não conhece, saiba que trata-se de pontos luminosos que, segundo muitos crentes, costumam aparecer brilhando em reuniões de busca de poder, sobretudo vigílias durante a noite ou cultos realizados nos montes, prática comum nas periferias de grandes cidades como o Rio de Janeiro. O objetivo das tais estrelinhas? Ninguém sabe, mas costuma-se dizer que é fogo puro, assim como tantas outras manifestações do gênero.

“Alguns desses elementos são resultado de um processo de sectarização religiosa”, opina o teólogo e mestre em ciências da religião Valtair Miranda. “Ou seja, quanto mais exótico for a manifestação, mais fácil será para esse líder carismático atrair seguidores para seu grupo”. Miranda explica que, como as igrejas evangélicas, sobretudo as avivadas, são, em linhas gerais, muito parecidas, o que os grupos sectários querem é se destacar. “Eles preconizam um determinado tópico teológico ou passagem bíblica, e crescem em torno disso. Objetos como lenços ungidos, medalhas, sal ou sabonete santificados são exemplos. Quanto mais diferente, maior a probabilidade de atrair algum curioso”. A estratégia tende a dar resultado quando gira em torno de uma figura religiosa carismática. “Sem carisma, estes elementos logo provocam sarcasmo e evasão”, ressalva. O estudioso lembra o que caracteriza fundamentalmente um grupo sectário – o isolamento. “Uma seita precisa marcar bem sua diferença para segurar seu adepto. Quanto mais ele levantar seus muros, mais forte será a identidade e a adesão do fiel.”

“Propósito de Deus”– Mas quem faz das manifestações do poder do Espírito Santo parte fundamental de seu ministério defende que apenas milagres não bastam. “É necessário um propósito e uma mudança de vida”, declara o bispo Salomão dos Santos, dirigente da Associação Evangélica Missionária Ministério Vida. Como ele mesmo diz, trata-se de uma igreja movida pelo poder da Palavra de Deus, “que crê que Jesus salva, cura, liberta e transforma vidas”. O próprio líder se diz um fruto desse poder. Salomão conta que já esteve gravemente doente, sofrendo de hepatite, câncer e outras complicações que a medicina não podia curar. “Cheguei a morrer, mas miraculosamente voltei à vida”, garante o bispo, dizendo que chegou a jazer oito horas no necrotério de um hospital. “Voltei pela vontade de Deus”, comemora, cheio de fé.

Consciente, Salomão diz que milagres e manifestações naturais realmente acontecem, mas “somente para a exaltação e a glória do Senhor, e não de homens ou denominações”. O bispo também observa que alguns têm feito do poder extraordinário de Jesus uma grande indústria de milagres: “O Senhor não dá sua glória para ninguém. Ele opera maravilhas através da instrumentalidade de nossas vidas”. E faz questão de reiterar a simplicidade com que Jesus viveu sua vida terrena e que, muitas vezes, realizou grandes milagres sem nenhum alarde. “O agir de Deus não é um espetáculo.” (Colaborou Carlos Fernandes)

 

Sangue fajuto

A novidade chama a atenção pelo seu aspecto bizarro. Num templo da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), fiéis caminham através de pórticos representando diversos aspectos da vida (“Saúde financeira”, “Família”, “Finanças”). Até aí, nada demais – os chamados atos proféticos como este são comuns na denominação. O mais estranho acontece depois. Caracterizados como sacerdotes do Antigo Testamento, pastores da Universal recebem as pessoas e, sobre um pequeno altar estilizado, fazem um “sacrifício de sangue”. A nova prática vem ganhando espaço nos cultos da Iurd, igreja que já introduziu no neopentecostalismo uma série de elementos simbólicos. Tudo bem que o sangue não é real (trata-se de simples tinta), mas a imolação simulada vai contra tudo o que ensina o Novo Testamento, segundo o qual Jesus, o Cordeiro de Deus, entregou-se a si mesmo como supremo e definitivo sacrifício pela humanidade. Com sangue puro, e não cenográfico.

Campeões de audiência

Processo contra líderes da Igreja Universal faz reacender guerra entre Rede Globo e TV Record.

Por Da Redação

Os mesmos conhecidos personagens, só que em novo capítulo. Tal qual os repetitivos enredos das novelas que transmitem, a Rede Globo e a TV Record voltaram a protagonizar cenas muito parecidas às da guerra travada pelas duas emissoras em 1995. Novamente, o ponto de partida da briga, em que os respectivos telejornais viram armas principais, são acusações contra os líderes da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), tendo o seu líder e fundador, o bispo Edir Macedo, à frente. A relação entre igreja e emissora é estreita, já que a Record é controlada pela Universal e Macedo detém, segundo informações do mercado, 90% da tevê.

O juiz Gláucio de Araújo, da 9ª Vara Criminal de São Paulo, abriu em agosto processo contra o religioso e mais nove pessoas ligadas a ele pelos crimes de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Ele acolheu a denúncia do Ministério Público (MP), segundo a qual as doações dos fiéis da Iurd eram desviadas por meio de uma engenhosa triangulação entre corporações com sede em paraísos fiscais, até chegarem, ilegalmente, às contas da Rede Record e a várias outras empresas de comunicação ligadas ao grupo. O dinheiro seria repassado para as empresas Unimetro e Cremo, que o enviariam para outras empresas com sede nas Ilhas Cayman, no Caribe: a Investholding e a Cableinvest. Os recursos depois voltariam no Brasil, sendo utilizados em atividades alheias às da igreja. Crime, portanto. As informações do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

O trabalho do MP paulista, fruto de uma investigação de dois anos, produziu uma denúncia contundente: “A atuação da quadrilha não conheceu limites. Seus integrantes se utilizaram da Igreja Universal do Reino de Deus para a prática de fraudes em detrimento da própria igreja e de inúmeros fiéis”. Além disso, o MP, que calcula a arrecadação da Iurd em cerca de R$ 1,4 bilhão por ano – cifra que a catapultaria ao seleto grupo das grandes corporações, se empresa fosse –, acusa Macedo e os demais líderes de usarem os dízimos e ofertas dos fiéis em benefício próprio. A denúncia do MP chama os líderes da igreja de “grupo criminoso” e lista casos de pessoas decepcionadas com a Iurd, que, após terem sido persuadidas a doar alta soma de dinheiro, com a promessa de receberem bênçãos materiais, viram sua situação financeira piorar. Diversas pessoas nesta situação têm pedido reparação por via judicial.

Os réus no processo são, além de Macedo, Honorilton Gonçalves, bispo e antigo dirigente da Universal, hoje vice-presidente da TV Record; João Batista Ramos da Silva, membro da igreja e ex-deputado federal; Jerônimo Alves Ferreira, presidente do grupo Record no Rio Grande do Sul; Alba Maria da Costa, diretora de finanças da emissora; e outros diretores e ex-diretores de empresas ligadas ao grupo Universal, como Osvaldo Sciorilli, Edilson da Conceição Gonzales, Verissimo de Jesus, João Luis Dutra Leite e Maurício Albuquerque e Silva. A partir da aceitação da denúncia pela Justiça, todos responderão por lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.

Circo armado, restava a plateia. E ela foi obtida em rede nacional no dia em que o MP apresentou a denúncia. O Jornal Nacional, da Rede Globo, o mais prestigiado noticioso da TV brasileira, dedicou quase dez minutos de sua pauta ao tema. Só para comparar, foi tempo semelhante ao destinado à cobertura do nascimento da menina Sasha, filha da apresentadora Xuxa Meneghel, em 1998. Antiga desafeta de Macedo e da Universal, a vênus platinada encontrou um bom motivo para fustigar sua principal concorrente. De maneira didática, em reportagem de César Tralli, o jornal mostrou como funcionaria o esquema supostamente montado para enriquecer Macedo e irrigar com recursos a Record. Falou-se de algo em torno de R$ 300 milhões por ano, que seriam obtidos graças à venda, a preços cinco vezes acima do mercado, de horários para a Universal veicular seus programas.

Cenas de Macedo e seus auxiliares, largamente usadas pela Globo nos últimos 14 anos sempre que a intenção é atacar a Universal e a Record, voltaram ao ar. As imagens são grotescas. Numa delas, um Macedo ainda jovem (hoje, o bispo tem 62 anos), no intervalo de uma pelada, ensina a seus pastores, usando linguagem chula, como arrecadar dinheiro em cultos. O destaque é para a frase “ou dá, ou desce”, com suas mais variadas interpretações. O advogado que representa tanto a igreja quanto o bispo, Arthur Lavigne, considera a denúncia uma mera repetição de outras que motivaram processos, já arquivados, que envolviam a compra da TV Record, no fim dos anos 1980 – transação que envolveu também o pastor e líder batista Nilson do Amaral Fanini.

Lavigne é enfático ao afirmar que, em todas as ações, Macedo foi considerado inocente.  O advogado sustenta que a movimentação financeira do grupo é totalmente legal, e o acolhimento da denúncia pela Justiça de São Paulo é um erro. A defesa também procura mostrar que os recursos arrecadados são de fato investidos na igreja e em suas obras sociais, e não carreados para as diversas empresas administradas por representantes da igreja.

 

Golpe e contragolpe – O tiroteio eletrônico se estendeu por todo o mês de agosto. De um lado, a Globo trouxe ao telespectador matérias minuciosas sobre o andamento do processo criminal – que, até o fechamento desta reportagem, não havia sido concluído – e do malabarismo financeiro que seria feito a fim de desviar o dinheiro ofertado pelos fiéis para o bolso dos líderes e para a construção de um patrimônio megalômano. A Record articulou um contragolpe. Na telinha da emissora de Macedo, extensas reportagens mostravam o que seria um grande papel social desenvolvido pela Universal, não apenas proporcionando assistência e alimentação aos pobres, com destaque para a Fazenda Canaã, no interior baiano, como promovendo a melhoria de vida de seus fiéis. Testemunhos de pessoas que se disseram libertas dos vícios e da pobreza graças à fé e às correntes de oração realizadas na Universal foram veiculados aos borbotões. O Jornal da Record, apresentado pelos jornalistas e ex-globais Ana Paula Padrão e Celso Freitas, também dedicou mais de dez minutos para atacar a emissora rival.

Uma entrevista com Edir Macedo feita em Miami (EUA), onde mora, foi exibida num domingo à noite, horário normalmente disputado palmo a palmo pelas duas emissoras. Nela, Macedo, respondendo a perguntas chapa-branca da repórter Adriana Araújo – outra que, a exemplo de diversos colegas da Globo, tomaram o rumo da Record –, disse se alegrar com as tribulações “por amor ao Evangelho”, como o apóstolo Paulo. O bispo, apresentado por Adriana como um pregador, voltou a se apresentar como vítima de preconceito religioso e de “interesses sórdidos”. Em tom provocativo, Macedo encerrou sua entrevista dizendo qual seu maior sonho: “Fazer da Record a líder de audiência no país.”

O objetivo parece longe de se concretizar. Consolidada com folga na preferência do telespectador brasileiro há quatro décadas, a Globo é absoluta no horário nobre e lidera na média com larga vantagem sobre as concorrentes. A Record, no entanto, vem subindo graças a investimentos em mão de obra – como a contratação de figurões da rival –, equipamento e produções, inclusive na teledramaturgia, ponto forte da Globo. Em diversos momentos ao longo da programação, a Record assume a ponta, e na cobertura esportiva, tem conquistado pontos preciosos. Já conseguiu, por exemplo, a exclusividade na transmissão aberta dos Jogos Olímpicos de 2012, um investimento de 60 milhões de dólares, e quer repetir o feito na Copa do Mundo de 2018.

 

Trégua – A briga também revirou o passado. O jornalismo da Record mostrou como a Globo teria crescido à sombra e em colaboração com o regime militar que controlou o país entre 1964 e 1985 – justamente o período em que a emissora carioca nasceu e cresceu. Foram rememorados casos largamente conhecidos envolvendo a TV da família Marinho, como o esquema envolvendo a empresa de apuração eleitoral Proconsult, que em 1982 tentou, via fraude, evitar que Leonel Brizola conquistasse o governo do Estado do Rio de Janeiro. Também foi lembrado o silêncio da Globo durante boa parte da campanha das diretas, em 1984, e a famosa edição do Jornal Nacional que favoreceu Fernando Collor pouco antes da eleição presidencial de 1989, tida como um dos principais fatores a impedir a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva naquele ano.

Após um mês de escaramuças, no início de setembro o assunto sumiu do noticiário. O clima de beligerância entre as duas emissoras continua, mas arrefeceu à espera de fatos novos. O armistício teria sido incentivado pelo governo federal, anunciante das duas emissoras. Não é a primeira vez que o Planalto se mete nessa briga. Na década de 90, o então poderoso ministro das Comunicações de Fernando Henrique, Sérgio Motta, reuniu-se com executivos das duas emissoras para pedir uma trégua na violenta troca de acusações, que já soava como guerra religiosa com difamações contra evangélicos e católicos. Desta vez, o vice-presidente da República, José Alencar, encarregou-se de minimizar o conflito, afirmando que as acusações contra a Iurd são uma questão “a ser resolvida pelo Judiciário”.

Em todo caso, a Globo, escaldada, centrou fogo em Macedo, procurando desvincular seus ataques de qualquer preconceito de natureza religiosa, já emissora fundada por Roberto Marinho tem ligações históricas com o catolicismo. Coincidência ou não, meses antes de a crise estourar, o mesmo Jornal Nacional surpreendeu muita gente ao exibir uma série de reportagens amplamente favorável ao segmento evangélico. Mostrando iniciativas de igrejas como a Batista e a Luterana no socorro aos desvalidos, apoio à educação e ações nas áreas de saúde e cidadania, a Globo destacou o crescimento evangélico no país. A Universal, terceira maior organização religiosa do país em número de adeptos – atrás apenas da Igreja Católica e da Assembleia de Deus –, foi ignorada. Resta esperar pelo próximo capítulo.